Eduardo Prado Coelho
S.Martinho deixou e deixa em todos os que lá passaram férias (desde a infância, como eu e tantos outros) memórias parecidas e diferentes, mas esta imagem da Cecília a passar à beira mar com o seu carrinho dos bolos é igual e igualmente entranhável para todos. a imagem seguinte seria a de um monte de crianças à volta dela ( já estive nesse papel, também, como agora está o meu filho, os meus sobrinhos, o resto do miúdos que, quando a vislumbram ao fundo da praia, começam a pedir se podem comprar-lhe um bolo quando ela passar ali).
lembrei-me de S.Martinho, a propósito de Eduardo Prado Coelho, porque também ele lá passou férias e porque recordo tê-lo visto algumas vezes sentado em frente da barraca (em S.Martinho não há toldos, há barracas alinhadas em "ruas" que são uma espécie de "moradas de praia" ) ao lado da sua mãe, há muitos anos atrás. eu era estudante de Línguas e Literaturas Modernas na Faculdade de Letras e ele era, a par de Roland Barthes e Umberto Eco, um dos meus "ídolos". era um crítico (foi assim que primeiro o conheci) com a sensibilidade e a transcendência de um grande escritor. era um homem das Letras e da Cultura que nos enche de orgulho e cuja perda deixa um imenso vazio.
em "Dia por Ama" ele escreveu assim:
"Quando começa uma pessoa a nascer? Quando começa a morrer? Será que começa a morrer ainda antes de ter nascido por inteiro? Sentado numa cadeira de praia interrogo o pé que desenha na areia quente uma âncora. E depois a âncora desenha um coração. E depois o coração desenha uma janela. Levanta-se da cadeira, aproxima-se da janela, debruça-se, dá um impulso ao corpo magoado e cai. Só o vento o acompanha. Está ainda a nascer? Ou começou agora? Meu amor, vejo-te nascer todos os dias, com os olhos estremunhados e o polegar enfiado na boca. Escondo de ti que todos os dias comecei a morrer, desde sempre, envergonhado de não ter guelras, ou asas, ou orelhas com pêlo felpudo. Aproveito o teu nascimento ininterrupto para dar um salto para junto de ti, e ter a ilusão, a alegria, a flor, a moeda mágica, que vão garantir que é contigo que nasço em cada dia que nasces."
é esse o poder de um grande escritor: nascer sempre, todos os dias, em quem o lê.
então, com as palavras desenho no coração uma âncora e guardo, do que li, o que mais amei.